domingo, 12 de junho de 2011

Entregar a casa ao Banco é suficiente para saldar a dívida? …ou a velha questão da legitimidade do Poder Judicial.


«A lei é democraticamente legitimada.
O juiz aplica a lei e só a lei.
O juiz goza de legitimidade democrática.»

No início do ano, uma decisão pioneira Audiência Provincial de Navarra – o correspondente, em Portugal, a um Tribunal da Relação – pôs em dúvida toda a “lei hipotecária” espanhola e poderá afectar as entidades financeiras com actividade em Espanha.
A sentença sustenta que a entrega de uma casa ao Banco, no âmbito de um empréstimo à habitação que deixou de ser pago, é suficiente para saldar a respectiva dívida. Por outras palavras, se o imóvel se desvalorizou e já não cobre o montante em dívida, o problema não é do proprietário mas do Banco, que foi o responsável pela sua avaliação, não podendo exigir ao cliente nenhum outro pagamento adicional: «o Banco não teria concedido o empréstimo se o imóvel não tivesse um valor suficiente para o garantir, e esse valor foi fixado pelo próprio Banco», fundamentou a Audiência Provincial de Navarra, numa decisão que contraria decisões de 2003 e de 2006 do Supremo Tribunal espanhol, em que se decidiu de forma contrária.
No centro da polémica está uma decisão de um Tribunal de primeira instância, que a Audiência Provincial de Navarra veio agora confirmar, sobre um empréstimo hipotecário que o BBVA concedeu a um empregado de limpeza de 47 anos e que este deixou de pagar, tendo o Banco procedido à execução da hipoteca sobre o imóvel. No entanto, o imóvel, avaliado inicialmente pelo Banco em 78.000€, veio a ser arrematado na venda judicial, pelo próprio BBVA, por apenas 48.000€, prosseguindo o processo de execução de outros bens para cobrança da totalidade da quantia em dívida. No entanto, o Tribunal de recurso de Navarra entendeu, numa decisão sem quaisquer precedentes, que devolver a casa ao Banco é suficiente para saldar a hipoteca, mesmo que o valor do imóvel tenha diminuído, rejeitando, assim, o recurso apresentado pelo segundo maior Banco espanhol, o BBVA, que logo anunciou pretender recorrer da decisão para o Tribunal Constitucional espanhol, com o fundamento que a decisão põe em causa a garantias geral das obrigações: sempre que a venda do imóvel dado em hipoteca não garante o valor da dívida, o credor pode exigir o diferencial, accionando a penhora de outros bens ou rendimentos (p. ex., de parte do salário), quer do devedor principal quer de eventuais fiadores.
Segundo muitos especialistas, a decisão, a ser confirmada pelo Tribunal Constitucional espanhol, poderá pôr em causa todo o sistema financeiro espanhol e afectará directamente as entidades financeiras – agora especialmente vulneráveis ao impacto da crise imobiliária e ao considerável volume de crédito hipotecário em incumprimento –, tendo, inclusive as agências de notação financeira anunciado que reveriam o “rating” dos Bancos espanhóis no caso da decisão em causa vir a ser confirmada. 
Não raras vezes o Poder Judicial é chamado a regular questões que vão além da decisão do próprio processo judicial em que intervém, produzindo a decisão tomada efeitos bem mais latos dos tradicionais efeitos “inter partes”. Casos há, como o que se deu conta – e inúmeros outros, mesmo em Portugal e que todos têm em mente –, em que as decisões judiciais têm consequências que vão além dos “meros” efeitos jurídicos, produzindo efeito “erga omnes”, de natureza política.
Situações há, pois, que os juízes são chamados a tomar decisões que vão muito além da tradicional concepção do juiz como a “boca que pronuncia as palavras da lei.
Se o Presidente da República e os membros dos Poderes Legislativo e Executivo têm uma legitimidade (directa ou indirecta) resultante da eleição, recebendo desta forma um mandato, temporário, para o exercício das respectivas funções, já o Poder Judicial não tem qualquer origem electiva, o que poderá indiciar, para muitos, uma menor legitimidade, principalmente no que concerne a decisões como em casos como este, que assumem um carácter político, isto é, que vai muito mais além do aspecto jurídico.
Na nossa sociedade o Poder Judicial poderá, em muitos casos, influir no processo de governação, sendo, para muitos, urgente repensar a sua orgânica constitucional, a sua legitimação e controlo democrático.
Já a crescente judicialização da vida pública conduzirá a tensões inevitáveis entre o poder político e o Poder Judicial, adivinhando-se que aquele tenha a tentação de arremessar o velho argumento da falta de legitimidade democrática deste. Mas não é neste âmbito que a questão se deve colocar – já que aqui aquele silogismo parece ser suficiente –, é antes naquele que vínhamos referindo: quando uma decisão judicial ganha especial relevância política e social, afectando toda uma Nação, conforme se ilustrou com a recente deliberação da Justiça espanhola. Ainda esperamos que o juiz aplique a lei e só a lei?

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