sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Legado

I)

A casa e os terrenos adjacentes tinham sido pertença de um burro que atravessara a fronteira vindo de Espanha e que, passado algum tempo, contraía ali matrimónio com uma senhora portuguesa - falecendo num dos três dias subsequentes às núpcias, de causa inexplicável. O certo é que Dª Antónia, a viúva, após o sucesso desta fatalidade, imediatamente assumiu, por direito próprio, a gestão e a propriedade da quinta, não voltou a casar e viveu um século.

Crê-se, também, que não teve filhos.

II)

Não era ainda o meio século.

Desde a longínqua Lisboa, um indivíduo sombrio anunciava eleições livres!, tão «livres como na livre Inglaterra!». Coisa bisonha. Lá, para lá dos montes, para além dos quebrados das montanhas, nas veias da serrania, nunca ninguém escutara tamanha cousa. Excepto uma senhora viúva, que era mulher atenta, nascida ao tempo do Ultimatum, e que, ao deitar, apreciava brandy.

III)

Soube-se legatário de um edifício medieval que originalmente havia sido um seminário, adquirido e transformado em casa de lavoura, no último quartel do Séc. XIX, por um brasileiro que ali enterrara a sua pequena fortuna. Este homem não só pagou uma soma avultadíssima pela compra como mandou derrubar e levantar a seu gosto muros e paredes durante uma década. Acabou transmitindo por venda a propriedade a um forasteiro que lhe desposou a filha única.


(Publicado na coluna «O homem que era Quarta-Feira» de «O Primeiro de Janeiro», em 02. 11. 2011)

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